sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A deusa ferida em todos nós

Quando Mary Daly descreve em Beyond God the Father como a "imagem do pai" do cristianismo distorceu e tiranizou nossa visão das mulheres no Ocidente, ela está também descrevendo o que Jung chamaria de poder desvirtuante de um arquétipo isolado. Os arquétipos podem chegar a possuir culturas inteiras, tornando-as neuróticas da mesma maneira que um "complexo de pai" pode levar uma pessoa a ser neuroticamente submissa à autoridade, por exemplo.

O que Daly e outras autoras feministas denunciam como o mal do "patriarcado" é precisamente o que os junguianos criticam como sendo o modo pelo qual a civilização ocidental acabou sendo unilateralmente ofuscada pelo arquétipo do Pai, à exclusão do arquétipo da Mãe. Em nossa reverência exclusiva ao princípio paterno, em que suprimimos ou menosprezamos o feminino, acabamos provocando graves danos à nossa saúde psíquica individual e coletiva. Isso sem mencionar a saúde física de nosso corpo e a do próprio planeta Terra.

Mas há sinais indicando que, espontânea e conscientemente, o pêndulo começa efetivamente a oscilar. A supremacia patriarcal vai manifestando sintomas de falência espiritual, e em toda parte - nas artes, na literatura, na política, nas igrejas - há sinais de um enorme ressurgimento do feminino, da consciência matriarcal. Um auspicioso "retorno da Deusa" está certamente ocorrendo.

É urgente, portanto, que compreendamos a natureza e a condição dos arquétipos femininos que estão despontando do inconsciente coletivo da nossa cultura. A primeira coisa que notamos é que, como qualquer pessoa que foi encarcerada, exilada, vituperada e caluniada, as deusas, ao serem restauradas na consciência como princípios psicoespirituais, frequentemente parecem fracas, confusas, magoadas, feridas. Esses ferimentos se devem ao tratamento áspero e cruel que receberam nas mãos da repressão patriarcal: Afrodite envergonha-se de sua sexualidade; Atena questiona sua capacidade de pensar; Hera duvida do seu próprio poder; Deméter desconfia de sua fertilidade; Perséfone nega suas visões; Ártemis não sabe interpretar sua sabedoria corporal instintiva. Isso, e muito mais, é o legado do exílio psquico do feminino.

Devemos prestar atenção especial ao que chamamos chagas das deusas: as mágoas profundas que todas elas sofreram, ferimentos que lhe foram infligidos durante a longa história da batalha psicológica pela supremacia empreendida pelas forças masculinas na cultura ocidental. Não importa se essas chagas surgiram pela primeira vez com a hegemonia guerreira dos gregos antigos, com o imperialismo dos romanos ou com o medo puritano do feminino e do corpo entre certas facções do cristianismo; a nós urge perguntar por que toda mulher moderna carrega dentro de si resquícios da chaga de uma deusa específica que vem apostemando-se há quase três milênios.


(in A Deusa Interior, Jennifer Barker Woolger)

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