terça-feira, 24 de novembro de 2009

Por que Afrodite ameaça tanto a sociedade patriarcal? (Parte II)

O Nascimento de Afrodite

“Na época da criação dos primeiros deuses, Gaia, a Mãe-terra, e Ouranos, o Pai Celeste, haviam dado à luz muitos filhos divinos. Dentre os últimos a nascer estavam os Titãs, filhos monstruosos que odiavam o pai. De modo que Ouranos lançava-os de volta à pobre Gaia cada vez que um surgia.

Finalmente, um dos filhos mais jovens, Cronos, que também odiava o pai, voltou-se contra Ouranos e castrou-o com uma foice de pedra que Gaia fizeram especialmente para castigar seu cruel companheiro. Sem atinar, Cronos lançou então o membro decepado por sobre os ombros, e este caiu por terra. Das gotas ensangüentadas brotaram as Fúrias e os Gigantes, mas o membro genital caiu em tormentoso mar, onde foi carregado pelas ondas.

Da espuma que se formou em torno do pênis decepado foi crescendo uma menina. Ela foi primeiro levada pelo mar até Citera, e depois para Chipre, sempre envolta pelas ondas. Lá a linda deusa aportou com seus dois companheiros, Eros, cujo nome significa Amor, e Himeros, cujo nome significa Desejo. Quando tocou terra firme, a relva brotou debaixo de seus pés. Seu nome, para os mortais, era Afrodite, que significa “nascida da espuma”. (Hesíodo)

O mito nos diz que Cronos, filho de Gaia, a Terra Mãe, lançou no oceano os órgãos genitais arrancados de Ouranos. É chegado o tempo (Cronos) de tomarmos a tirania dos céus, o domínio do mental, impotente. Cronos era um deus da agricultura, de modo que sua sabedoria e poder pertencem a terra, juntamente com sua mãe Gaia. Na realidade, porém, ele ajuda a derrubar o pai tirânico não apenas para a terra, mas para a água. Vemos aqui o desenrolar de um drama cósmico dos elementos: terra, ar e água. O resultado da supressão da terra pelo ar é um novo nascimento vindo da água – Afrodite. A água costuma representar sentimentos e empatia na linguagem mitológica e onírica.

Como a maioria dos pais tirânicos, Ouranos passa a temer que seus filhos também queiram um pouco de ação, de modo que procura impedir que nasçam. Mas assim perde completamente contato com a Mãe Gaia, a consciência da terra e o mistério da procriação. Seu castigo é perder a própria falicidade, a capacidade de gerar algo novo. A consciência celeste torna-se impotente.

Mas devemos reparar bem no que acontece com os órgãos genitais perdidos, que se transformam no oposto dele. De uma tirania encarquilhada, esfacelante e masculina nasce uma bela jovem, inocente e feminina. É um milagre, o milagre da reversão dos opostos psíquicos. Quando ocorre uma inversão radical assim, significa psicologicamente que há uma necessidade enorme de compensação. Hoje, como na Grécia antiga, a abundante sexualidade Afrodite aparece como uma reação a um controle mental excessivo vindo de cima por parte do masculino.

Significa também que o patriarcado não pode pretender controlar a natureza essencialmente expansiva da energia feminina. Suprima-se a fecundidade da terra (Gaia) e ela ressurgirá novamente no tempo (Cronos) como uma energia erótica vibrante (Afrodite).[1]

Afrodite, certamente, não foi grega desde o início. A maioria dos estudiosos hoje a consideram uma descendente da deusa sumeriana Ishtar (mais tarde Astarte, na Babilônia), que era ao mesmo tempo uma deusa do amor e a rainha suprema do céu. Em seu culto estava presente a idéia do poder unificador e gratificador de Eros, acorrentado e corroído numa civilização doente.[2] A santificação do Eros e da procriação. Afrodite é o arquétipo da sexualidade e da sensualidade, do Eros livre. Não é virgem, pois valorizava as experiências emocionais e os relacionamentos, mas não como permanentes e duradouros. A eterna amante... Por se amar, tudo nela transpira amor.


[1] (A Deusa Interior – Um guia sobre os eternos mitos femininos que moldam nossas vidas, Jennifer Barker Woolger e Roger J. Woolger)

[2] (Eros e Civilização – Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, Herbert Marcuse)

sábado, 7 de novembro de 2009

Por que Afrodite ameaça tanto a sociedade patriarcal?

O que é tão perigoso na sexualidade de Afrodite? Por que ela é tantas vezes retratada como uma sedutora , uma bruxa, uma mulher fatal? Para os gregos, ela era a feiticeira Circe, fascinando os companheiros de Ulisses e transformando-os em porcos. Para os primeiros padres cristãos, a mulher sedutora era o próprio epítome do pecado. Na Idade Média, havia as perigosas náiades, ou ninfas da água, que fascinavam os cavaleiros errantes e os desgraçavam até a morte. Mais recentemente, tivemos uma Anna Karenina arrastando seu amante, Vronski, à objeção social e ao exílio, ou uma Hester Prynne marcada com a letra escarlate. Hoje em dia, as novelas de televisão estão repletas de sereias cavadoras de ouro que vivem arruinando reputações com seus estratagemas.

E a isca é sempre o fascínio sexual, a que os homens parecem ser totalmente impotentes para resistir. Os gregos racionalizavam a sua paranóia conferindo a Afrodite uma cinta mágica capaz de desarmar todos os homens e deuses que a ameaçassem.

Todavia, há algo altamente suspeito nesses exemplos – em todos eles, os homens são apresentados como vítimas. Vitimas de seus próprios sentimentos não admitidos talvez, mas certamente não vitimas efetivas das mulheres. Isso tudo cheira muito a culpa deslocada. Pois, se houve algum grupo social vitimado no Ocidente patriarcal, foram as mulheres.

Existem, a nosso ver, dois fatores atuando: o medo que os homens têm de perder o poder e um horror ao corpo. A questão do poder remonta à grande passagem da família matrilinear para a família patrilinear há muito tempo, muito tempo atrás. A questão do corpo é mais recente, tendo se originado na propensão ascética do cristianismo.

“A depreciação relativa da mulher de verdade é [...] compensada por impulsos demoníacos [do inconsciente, que ressurgem] projetados sobre o objeto. Num certo sentido, o homem ama menos a mulher como o resultado dessa depreciação relativa – e assim ela lhe aparece como uma perseguidora, i.e., uma bruxa. Daí a fantasia medieval sobre as bruxas, essa mácula inextirpável sobre o final da Idade Média, surgida paralelamente a – e, na realidade, como um resultado da – intensificação da adoração da Virgem” (Psychological Types, Jung)

O outro grande fator que está por trás do medo patriarcal de Afrodite é o horror ao corpo inculcado pelo cristianismo. O primeiro culpado, por consenso comum, foi São Paulo. A obsessão de Paulo era impedir a fornicação e, a seu ver, era este o principal valor do casamento. Embora achasse muito preferível manter-se sublimemente celibatário como ele, sempre que a carne se mostrar fraca é melhor, em suas palavras imorredouras, “casar-se do que arder” (I Coríntios 7:9) – o “arder” referindo-se, é claro, à concupiscência!

Paulo e aquele outro gigante espiritual e misógino, Santo Agostinho, lograram estampar o cristianismo e o Ocidente com uma aversão ao sexo e ao corpo da qual nós nunca conseguimos nos recuperar plenamente. (“Vim para Cartago, onde de todos os lados fervia a sertã de criminosos amores”, escreveu ele descrevendo os anos de tentação).

No final do século III, começou-se a discutir o celibato dos padres. O debate durou quase mil anos, até que a autoridade papal resolveu-o em favor de São Paulo. Um dos principais argumentos era que o contato sexual com uma mulher poderia profanar os santos sacramentos.

Ao longo dos séculos, uma série lúgubre de equacionamentos foi se estabelecendo na mente dos cristãos: Mulher = terra = sujeira = sexo = pecado. A queda do homem deveu-se a Eva, e a Igreja nunca deixou de advertir os homens de que é a mulher irá levá-los pelo primrose path to hell, como dizem os americanos, o caminho florido que leva ao inferno – curiosamente, Afrodite é a principal deusa das flores.

(A Deusa Interior, Jennifer Barker Woolger e Roger J. Woolger)