quarta-feira, 4 de maio de 2011

Alguem tem que morrer - Medeia x Ifigênia


Entra Ifigênia. Feliz. Ela é jovem, confiante e está eufórica com a proximidade do casamento.

IFIGÊNIA – (dirige-se ao público) – Olá! Quem são vocês? (coloca a trouxa no chão). Ah! Estou reconhecendo... São os guerreiros de meu pai, Agamêmnon... Eu sou Ifigênia... Acabei de chegar. Vim a Áulis a chamado de meu pai. Vou casar com Aquiles!!!!!

Medéia sai da sombra. 

MEDÉIA – (dirige-se ao público) – O que temos aqui? Guerreiros gregos! (riso irônico).Como disse um orador, nestas regiões, se você levantar uma pedra, inevitavelmente encontrará escorpiões... Ou um grego!

IFIGÊNIA – Eu estou tão animada! (senta no chão e começa a mexer nos itens de enxoval que tem na trouxa) Casar! Era tudo o que eu queria, que eu esperava, afinal, esse é o destino da mulher! Por que vocês pararam aqui? Ninguém responde? Ah! Já sei! Foi para o meu casamento!

MEDÉIA – (joga a trouxa no chão) Inferno de destino! Tudo o que existe para a mulher é o casamento e a procriação. Eles dizem que, enquanto enfrentam a morte nas guerras nós ficamos protegidas em casa. Mas qualquer mulher concordaria em trocar de lugar com eles, se pudesse escolher entre ir para a guerra ou parir uma criança... Aqui na Grécia uma mulher não existe se não tiver um tutor, um homem que tome todas as decisões e assuma todas as responsabilidades, como se ela fosse uma criança grande, uma desmiolada incapaz de cuidar da própria vida! E pensar que houve um momento em minha vida que cheguei a sonhar com isso, ser somente mais uma mulher qualquer! Mas eu não sou uma qualquer, eu sou Medéia, a princesa da Cólquida e, apesar disso, sou considerada uma estranha, uma estrangeira e aqui sou tratada como um nada e por quem? Por um homem que é um nada! Eu, que pertenço a uma linhagem ilustre de feiticeiras e sou sobrinha de Circe! [...]

IFIGÊNIA – O que vocês vão fazer com essas cordas? Amarrar-me? Por que?  Tirem as mãos de mim! Não!!!!! Eu não quero morrer!!!! Por que eu tenho que morrer? Por que estou sendo transformada em vítima de um sacrifício à Ártemis? Para pagar um antigo erro de meu pai? Não!!!! Pai!!!! Papai!!!! Paizinho!!!! Não me mate!!!!! Eu sou a tua Ifigênia! A tua primogênita! Papai!!!!! Olha para mim!!!! Sou eu! Tua filhinha! Eu não sou uma bezerra, uma corça, um animal para sacrifício! Sou Ifigênia!!!!

MEDÉIA – Acho até que, para ele, seria melhor que eu morresse! Mas, por que eu deveria morrer? Só para cumprir o destino das rainhas desgraçadas? Será que ele pensa que sou uma Fedra, uma Dejanira? Ele está muito enganado! Eu não vou me enforcar com um cinto! Eu sou Medéia!  (tom de dúvida) E o que eu faço? Fico e vivo na desonra, ou parto para sempre? Pois recebi uma ordem do rei para partir... E para onde eu poderia ir? (risos – cínica) Para a casa de meu pai, a mesma casa para onde enviei os despojos esquartejados de Apsirto, que mataram a promessa de continuidade da linhagem de Eetes? Ou para Iolcos, onde ainda se sente o cheiro de carne humana cozida? (desesperada) E como Jasão, o amor de minha vida, como, como ele pode concordar com isso? (determinada) Mas deixe estar... Eu e as crianças sumiremos da vida dele. Só que vai ser sob os meus termos!

IFIGÊNIA – (levantando com um pulo) Afastem-se de mim!!!! Afastem essa mordaça!!!! Eu não vou ser tratada como se fosse um animal! Eu sou apenas uma donzela, mas eu também tenho honra! Eu devia ser como a aurora de um novo dia, mas vejo que na verdade a minha vida chegou cedo demais ao crepúsculo! Eu uso o vestidos amarelos da cor do açafrão, mas devia estar amortalhada, pois eu já morri, eu apenas não sabia!

Medéia retira o tule negro dos cabelos e joga no chão. Ifigênia se cobre com o tule, como velada.

MEDÉIA – Será que Jasão pensa que as mulheres não têm honra? Pois eu vou fazer com que ele descubra o quanto custa desonrar uma mulher como Medéia! Essa princesinha de Corinto, essa bobinha pensa que vai ser feliz, que vai formar uma família com Jasão, que vai ter filhos com ele? Na posteridade nem ao menos vai se saber ao certo qual era o nome dela. Eu disse era? Sim, porque ela já morreu, ela só não sabe disso. A minha vingança será tão terrível que, para ela teria sido melhor nunca ter nascido. Jasão? Jasão ficará vivo para sofrer... A casa dele será vazia, e mulher nenhuma terá coragem de se deitar com o homem de Medéia. Negarei a ele a posteridade, valor caro aos gregos. Sem filhos, quem realizará os ritos e cuidará de seu túmulo depois de sua morte? Que importa se Jasão já tem filhos? Eu dei a ele os filhos, eu tiro...

IFIGÊNIA – (em pé, pausada e digna) Afastem-se de mim. Sumam com essas cordas e essa mordaça. Eu já entendi tudo. Que boba que eu fui! Pensei que vocês (aponta para a platéia) estavam aqui para participar do meu casamento... Na verdade, vocês, que são os guerreiros gregos, estão presos nessa praia de Áulis porque Ártemis nega os ventos aos navios que deveriam levá-los para Tróia. E vocês querem ir para Tróia, pois é na guerra que é forjada a glória dos heróis. Se Ifigênia não morrer, se ela não for sacrificada, não haverá guerra. Sem o sacrifício de Ifigênia não haverá vento. E vocês ficarão mofando aqui, ou voltarão frustrados para os seus reinos. [...]

MEDÉIA –  (endurecendo) Não! Não permitirei que Jasão ria por último. Jasão me destruiu, eu o destruirei também! (adoçando). Mas eles são meus filhos, matá-los é enterrar a espada na minha própria carne... (endurecendo) Não! Não abandonarei a minha prole, permitindo que estranhos os criem, submetendo-os à vontade de outros, deixando que se tornem como navios abandonados ao sabor das vagas e das tempestades! Protegerei os meus filhos como a leoa, que diante do perigo devora a ninhada, pois assim ela está novamente protegida no seu ventre! Não permitirei que estranhos os matem, melhor que encontrem a morte pela mão de quem mais os ama. Jasão me destruiu, eu o destruirei de volta, e para isso é preciso que eu estraçalhe esse coração feminino que bate no meu peito, é preciso que eu sufoque os sentimentos que ainda vivem em mim, é preciso que eu sangre no que há de mais precioso de minha vida. Matando meus filhos, a mulher que vive em mim morre com eles, mas pelo menos retomo as rédeas de meu destino e minha honra estará resguardada. Ainda serei Medéia, princesa de Cólquida, sobrinha de Circe, feiticeira e sacerdotisa de Hécate, que vive no mundo dos mortos!

IFIGÊNIA Essa é a minha vontade! Eu não quero morrer, mas assumo a escolha de me sacrificar e morrer. Pois, para que o sacrifício seja válido, a vítima deve consentir... E no futuro, quando os poetas cantarem os feitos dos heróis da Guerra de Tróia, quando essas maravilhas embalarem os sonhos e os banquetes dos nobres e quando exemplos dos guerreiros forem usados na formação dos jovens, todos serão obrigados a admitir que tudo isso só foi possível pela coragem de uma donzela, Ifigênia, que ao aceitar a morte liberou os ventos que sopram em direção ao Oriente, que tomou em suas mãos o seu destino, abraçou a morte e tornou possível o canto que enaltece a glória dos heróis. É aí que reside a honra dessa mulher que sou eu, Ifigênia.

(AlGUEM TEM QUE MORRER (trechos) - Profª Maria Amália Longo Tsuruda)


Sob inspiração da Ifigênia em Áulis e da Medéia de Eurípides, o “cavaleiro da paixão”, que nos ensinou a patologia do amor, mas trata-se apenas de uma inspiração. Este texto foi elaborado com o objetivo de ser apresentado como um exercício cênico na VI Semana de Estudos Clássicos da FEUSP e utiliza as figuras de Ifigênia e Medéia como pretexto para a discussão sobre o papel da mulher na sociedade grega clássica. O casamento e a geração de filhos legítimos, meta primordial na vida das mulheres, é exposto por meio das esperanças de uma donzela, Ifigênia, que pensa estar prestes a casar e por Medéia que, por sua vez, disseca as decepções de um casamento falido. Ifigênia e Medéia são duas mulheres completamente diferentes. Ifigênia é a jovem inocente que sonha com as promessas de um futuro totalmente previsível e Medéia é a mulher que, conhecendo uma realidade muito cruel, relembra seu passado. Ifigênia é a típica donzela grega e Medéia é, há um tempo, mulher e figura semidivina, feiticeira e estrangeira, portanto, uma estranha. Trata-se de dois monólogos e as personagens nunca se comunicam, mas, do contraste estabelecido por suas considerações espera-se, dentro da melhor tradição do teatro ático, que os espectadores reflitam a respeito do que era o casamento na sociedade grega da época. Para esse exame da instituição do casamento, as falas de Ifigênia aglutinam passagens de Homero sobre as funções a serem exercidas pela mulher na dinâmica social da família e o seu papel econômico dentro da oikos, que pouco mudaram até o século V a.C.

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