quarta-feira, 30 de julho de 2008

Natureza e Pandora

“[...] - Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.

- Não te assustes - disse ela -, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.

- Vivo? - perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.

- Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e, se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.


- Entendeste-me? - disse ela, no fim de algum tempo de minha contemplação.

- Não - respondi - nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. [...] Natureza tu? A Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?

- Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?

- Sim, o teu olhar fascina-me.

- Creio; eu não sou somente a vida; sou também a tua morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que
era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de
mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
- Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida! Para devorar
e seres devorado depois! Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o
que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a
quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos.
Que mais queres tu, sublime idiota?

- Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se
não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?

- Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto
que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e
perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra
lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve
viver
, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. [...]"

(In Memórias Póstumas de Bras Cubas, Machado de Assis)

5 comentários:

Dayana M. disse...

Desde de Machado isso acontece e a gnt não faz PORRA nenhuma

Thaiana disse...

Que beleza existiria na luz se naõ existisse as trevas?

Gil Rodrigues disse...

pois sim, eis a zfirmação da natureza. O tudo. O bem o mal o positivo o negativo o contínuo.

A parte que eu mais gostei: Pra quu queres viver? Para devorar e seres devorados depois.

Isso é a verdade. O ser que sempre quer devorar, mas esquece que será devorado depois. Ele sempre é devorado.

Unknown disse...

e as polaridades estão por aí, em tudo que a gente vê.

Francisco da Cruz disse...

Em Quincas Borba isso fica mais evidente. É inevitável ler Machado de Assis e não levar um tapa na cara dele.